I
– Considerações Iniciais
Questiona-se
sobre a possibilidade de se obter da União os valores pagos ao armador ou
proprietário do container, as despesas ocorridas pela demora no desembaraço das
mercadorias, quando esta foi ocasionada exclusivamente pela ocorrência de greve
dos servidores da alfândega.
A
demurrage é cobrada do importador ou contratante do container pelo tempo em que
ele permanecer, além do que fora previamente estabelecido. A natureza jurídica
destes valores, cobrados pela sobrestadia de containers é um tanto controversa,
às vezes sendo classificada como cláusula penal, outras como indenização
(entendimento majoritário), bem como algumas vezes como parte do serviço de
transporte aquaviário[1].
Tomemos
como referência o entendimento majoritário, de que o pagamento por conta da
sobrestadia se trata de uma indenização, de origem contratual, pelo
descumprimento do avençado, conforme entendimento do Superior Tribunal de
Justiça, conforme:
RECURSO
ESPECIAL. AÇÃO DE COBRANÇA DE SOBRE-ESTADIAS DE CONTAINERS (DEMURRAGES).
NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. NÃO OCORRÊNCIA. NATUREZA JURÍDICA. INDENIZAÇÃO.
DESCUMPRIMENTO CONTRATUAL. DESÍDIA DO DEVEDOR. LIMITAÇÃO DO VALOR
INDENIZATÓRIO. PACTA SUNT SERVANDA.
É
descabida a alegação de negativa de entrega da plena prestação jurisdicional se
a Corte de origem examinou e decidiu, de forma motivada e suficiente, as
questões que delimitaram a controvérsia.
As demurrages têm
natureza jurídica de indenização, e não de cláusula penal, o que afasta a
incidência do art. 412 do Código Civil.
Se
o valor das demurrages atingir patamar excessivo apenas em função da desídia da
parte obrigada a restituir os containers, deve ser privilegiado o princípio
pacta sunt servanda, sob pena de o Poder Judiciário premiar a conduta faltosa
da parte devedora.
Recurso
especial conhecido e provido.
(REsp
1286209/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em
08/03/2016, DJe 14/03/2016)
A
demurrage tem natureza jurídica de indenização, portanto, inadmissível
caracterizá-la como cláusula penal, quiçá como serviço de transporte.
II
– Da Responsabilidade do Estado em Caso de Greve
Pois
bem, se a natureza é indenizatória, em tese, tendo havido a ocorrência de
demurrage, obriga-se ao pagamento o importador, mas no caso de existência de
greve que, por motivo exclusivo, tenha impedido o desembaraço das mercadorias,
a lógica jurídica que se aplicaria, seria a de que haveria o direito de
regresso, do importador, contra a União, ou seja, a possibilidade de se cobrar
do real causador do impedimento que gerou a indenização, nos termos do que
dispõe o artigo 934 do Código Civil[2].
Outra
hipótese seria a de que não existe direito de regresso, mas a possibilidade de
se pedir indenização à União por ato ilícito, pela omissão do serviço público,
gerada pela greve, de acordo com o que dispõe o artigo 927 do Código Civil[3].
Tratando-se
de direito de regresso, ou de indenização direta oriunda de ato ilícito
ocorrido por omissão estatal no seu dever de prover serviço indispensável, o
fato é que a greve gera prejuízos, portanto passar-se-á a analisar a
possibilidade da recuperação dos valores pagos.
De
fato, o inciso VII, do artigo 37 da Constituição Federal confere o direito de
greve a todos os cidadãos, sem distinção, ressalvadas as condições em que se
tratar de serviço essencial, nos termos do que trata o artigo 10 da Lei
7.783/1989[4].
Veja-se
o entendimento da Ínclita 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região:
ADMINISTRATIVO.
MANDADO DE SEGURANÇA. SERVIDOR PÚBLICO. GREVE. IMPORTAÇÃO. EXPORTAÇÃO.
DESEMBARAÇO ADUANEIRO. CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO. - Trata-se de mandado
de segurança visando a que a autoridade coatora proceda ao desembaraço
aduaneiro de mercadoria da empresa impetrante, a despeito da greve dos fiscais
do Ministério da Agricultura. - Em
tema de importação/exportação de mercadoria, não cabe à parte interessada arcar
com o ônus decorrente da greve dos servidores públicos. Nesse caso,
impõe-se a liberação da mercadoria, em respeito ao princípio da continuidade do
serviço público. - Remessa obrigatória improvida. (1ª Turma, Rel. Des. Federal
José Maria Lucena, REOMS 100856-PE, julg. em 27.03.08, DJ de 14.05.08, p. 364)
(g.n.)
ADMINISTRATIVO.
FISCALIZAÇÃO DE MERCADORIA PARA EXPORTAÇÃO. GREVE DOS SERVIDORES PÚBLICOS DO IBAMA.
PORTO DE FORTALEZA. PARALISAÇÃO DAS ATIVIDADES. ATIVIDADE PRESTADA PELO ESTADO
DE NATUREZA ESSENCIAL. LIBERAÇÃO DAS MERCADORIAS. SENTENÇA MANTIDA. 1. A fiscalização de mercadoria é tarefa
prestada pelo Estado de natureza essencial, não se justificando sua demora por motivo
de greve. 2. Os servidores públicos em greve não podem prejudicar as atividades
produtivas da coletividade, que tem direito líquido e certo à continuidade da
atividade exercida no interesse público. 3. Não cabe ao particular arcar com qualquer ônus em decorrência de
greve dos servidores, que não justifica a imposição de qualquer gravame ao
particular. 4. Segurança concedida para o fim de determinar à
autoridade impetrada que procedesse à imediata fiscalização mercadorias, liberando-as,
uma vez cumpridas pela impetrante todas as demais formalidades e requisitos
para a importação. 5. Manutenção da sentença. 6. Precedentes desta egrégia
Corte Regional, inclusive da Primeira Turma (REOMS nº 95171 DJ - Data:
27/10/2006 - Página: 1231 - Nº: 207 – Rel. Desembargador Federal José Maria
Lucena). 7. Remessa oficial improvida. (1ª
Turma, Rel. Des. Federal Francisco Cavalcanti, REOMS95112-PE, julg. em 13.09.07,
DJ de 31.10.07, p. 908) (g.n.)
O
Estado tem o dever de indenizar pelos danos causados pelas condutas de seus
agentes, sejam elas comissivas ou omissivas, entendimento compartilhado pelo
Egrégio Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
TRIBUTÁRIO.
DESEMBARAÇO ADUANEIRO. PRAZO PARA CONCLUSÃO. PARALISAÇÃO DOS SERVIDORES DA
RECEITA FEDERAL. CONTINUIDADE DO SERVIÇO PÚBLICO. ORDEM PARA CONCLUSÃO DO
DESPACHO DE IMPORTAÇÃO. HONORÁRIOS RECURSAIS. NOVO CPC.1. Movimento grevista, ainda que com respaldo constitucional no direito
de greve, não pode impedir o prosseguimento das atividades econômicas das
empresas, porquanto a omissão do serviço público, na presente situação, causa
notória lesão ao direito líquido e certo da impetrante no exame do pedido de
liberação de mercadorias importadas.2. A jurisprudência vem admitindo a fixação do prazo de 08 (oito) dias
para a conclusão do despacho de importação, com base no artigo 4º do Decreto nº
70.235/72, exceto se houver exigências pendentes de cumprimento pela parte
impetrante.3. O art. 85, §1º, do Novo CPC, prevê que são devidos
honorários "nos recursos interpostos, cumulativamente", desde que o
cômputo geral dos honorários arbitrados em 1º grau e em sede recursal não
ultrapasse 20% do proveito econômico obtido na causa (§11 do art. 85 do
NCPC).4. Apelação desprovida. (TRF4, AC 5012314-23.2015.404.7208, PRIMEIRA
TURMA, Relatora MARIA DE FÁTIMA FREITAS LABARRÈRE, juntado aos autos em 09/08/2016)
MANDADO
DE SEGURANÇA. DESEMBARAÇO ADUANEIRO INTERROMPIDO. OPERAÇÃO-PADRÃO DOS
SERVIDORES DA RECEITA FEDERAL. MOVIMENTO PAREDISTA. 1. O exercício do direito
de greve por parte dos servidores públicos, não obstante se tratar de direito
assegurado pela Constituição, não pode constituir obstáculo à continuidade do
serviço público. 2. O administrado
tem direito líquido e certo de obter do Estado a prestação do serviço público
contínuo, adequado e eficaz, o qual não pode ser frustrado ao fundamento da
existência de movimento grevista dos servidores públicos. 3. Ainda que
não interrompido totalmente o desembaraço, o fato causa prejuízo às empresas
que necessitam dos produtos para o desenvolvimento de suas atividades,
merecendo proteção judicial. (TRF4, REMESSA NECESSÁRIA CÍVEL Nº
5017035-81.2016.404.7208, 1ª TURMA, Des. Federal AMAURY CHAVES DE ATHAYDE, POR
UNANIMIDADE, JUNTADO AOS AUTOS EM 23/06/2017)
Não
há dúvidas que o entendimento consolidado é de que deve prevalecer o direito
dos administrados na obtenção de um serviço eficaz e descontinuado, nos termos
do que dispõe o artigo 37, caput[5], da
Constituição Federal.
III – Do Dever do Estado de Ressarcir os
Custos com Demurrage Suportados pela Ocorrência de Greve que Impede o Desembaraço
de Mercadorias
Em
recentes julgados prolatados a União foi condenada ao pagamento de despesas de
armazenagem de mercadorias e demurrage, conforme veja-se:
IMPORTAÇÃO
DE MERCADORIAS. PRAZO PARA PROCESSAMENTO DO DESPACHO DE IMPORTAÇÃO. EXCESSO.
INDENIZAÇÃO. DESPESAS COM TAXA DE ARMAZENAGEM DE MERCADORIAS E DEMURRAGE.
HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1. No caso de destinação da Declaração de Importação
para o canal amarelo de conferência aduaneira, inexiste prazo específico
previsto na legislação aduaneira, pelo que se aplica, por analogia, o prazo de
oito dias, previsto no art. 4º do Decreto nº 70.235, de 1974. 2. Excedido o prazo para processamento do
despacho aduaneiro, a União deve indenizar os gastos que a parte autora teve
com as despesas relativas à taxa de armazenagem das mercadorias e demurrage,
proporcionalmente aos dias em excesso.
3. Em se tratando de sentença ilíquida, a definição do percentual dos
honorários advocatícios deve se dar quando da liquidação do julgado, nos termos
do art. 85, § 4º, II, da Lei 13.105, de 2015, os quais devem incidir sobre o
valor da condenação. (TRF4, AC 5002569-37.2015.4.04.7008, SEGUNDA TURMA,
Relator RÔMULO PIZZOLATTI, juntado aos autos em 05/12/2017)
ADUANEIRO
E TRIBUTÁRIO. INDENIZAÇÃO. DESPESAS COM TAXA DE ARMAZENAGEM DE MERCADORIAS E
DEMURRAGE. EXCESSO DE PRAZO PARA A CONCLUSÃO DO DESPACHO ADUANEIRO. PRINCÍPIO
DA EFICIÊNCIA. 1. Inexistindo prazo específico para os atos que compõem o
despacho aduaneiro, deve ser observado o prazo de oito dias, estabelecido para
execução de atos no âmbito do processo administrativo fiscal pelo art. 4º do
Decreto 70.235, de 1972. 2. Tendo extrapolado, injustificadamente, os prazos
relativos ao despacho aduaneiro, a
União deve indenizar os gastos que a parte autora teve com as despesas
relativas à taxa de armazenagem das mercadorias e demurrage,
proporcionalmente aos dias em excesso. 3. A
Autoridade Aduaneira deve pautar o seu agir pela observância ao princípio da
eficiência, nos termos do previsto no art. 37 da Constituição Federal.
(TRF4, AC 5025444-07.2015.4.04.7200, SEGUNDA TURMA, Relatora LUCIANE AMARAL
CORRÊA MÜNCH, juntado aos autos em 01/09/2017)
Não foi
estabelecido em lei o prazo para a fiscalização aduaneira concluir o despacho de
importação, exceto em algumas exceções, como no caso de procedimento especial[6].
Na ausência
de determinação legal para que se conclua o procedimento, sabiamente fora aplicado
nos casos em destaque, o disposto no artigo 4º do Decreto 70.235, de 06 de março
de 1972[7], ou seja,
deve a fiscalização aduaneira, concluir o despacho de importação no prazo de oito
dias. Esta ressalva é importante, porque inexistindo prazo específico, não estaria,
em tese, ocorrendo prejuízo ao importador, porque a fiscalização não teria um lapso
temporal estabelecido para a conclusão do procedimento, não podendo se cogitar atraso,
neste caso.
Desta
forma, podemos concluir que há possibilidade de se responsabilizar o Estado pelos
prejuízos causados pela ocorrência de sobrestadia, nos casos em que o desembaraço
aduaneiro ficou impedido pela existência de greve.
[1] A Receita Federal
através da Solução de Consulta COSIT nº 108, de 03 de fevereiro de 2017,
externou o entendimento (absurdo particularmente) de que o valor pago ao
transportador internacional a título de sobrestadia de contêineres (demurrage)
é parte do valor de transporte de longo curso, conforme a ementa: ASSUNTO:
OBRIGAÇÕES ACESSÓRIAS EMENTA: SOBRE-ESTADIA DE CONTÊINERES. INCLUSÃO NO
VALOR DO TRANSPORTE EM CONTÊINERES. OBRIGAÇÃO DE INFORMAÇÃO NO
SISCOSERV. O valor pago ao transportador internacional a título de
sobre-estadia de contêineres (“demurrage”) é parte do valor de transporte de
longo curso em contêineres e deve ser informado no Siscoserv no código
1.0502.14.90 da NBS. DISPOSITIVOS LEGAIS: Lei nº 12.546, de 2011,
arts. 24 e 25; Decreto nº 7.708, de 2012; Portaria Conjunta RFB/SCS nº 1.908,
de 2012; e IN RFB nº 1.277, de 2012, art. 1º. Disponível em: http://normas.receita.fazenda.gov.br/sijut2consulta/link.action?visao=anotado&idAto=80612
[2]
Art. 934. Aquele que ressarcir o dano causado por outrem pode reaver o que
houver pago daquele por quem pagou, salvo se o causador do dano for descendente
seu, absoluta ou relativamente incapaz.
[3]
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo
único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos
casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo
autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
[4]
Art. 10 São considerados serviços ou atividades essenciais:
I -
tratamento e abastecimento de água; produção e distribuição de energia
elétrica, gás e combustíveis; II - assistência médica e hospitalar; III -
distribuição e comercialização de medicamentos e alimentos; IV - funerários; V
- transporte coletivo; VI - captação e tratamento de esgoto e lixo; VII -
telecomunicações; VIII - guarda, uso e controle de substâncias radioativas,
equipamentos e materiais nucleares; IX - processamento de dados ligados a
serviços essenciais;
X - controle
de tráfego aéreo; XI compensação bancária.
[5] Art. 37. A
administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de
legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao
seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)
[6] Exemplo de prazo estabelecido
para conclusão: Art. 9º O procedimento especial previsto nesta Instrução
Normativa deverá ser concluído no prazo máximo de 90 (noventa) dias,
prorrogável por igual período em situações devidamente justificadas. (Redação
dada pelo(a) Instrução Normativa RFB nº 1678, de 22 de dezembro de 2016) (IN RFB
1169/2011)
[7] Art. 4º Salvo
disposição em contrário, o servidor executará os atos processuais no prazo de
oito dias.
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